Ao ouvir essa música, me lembro de um lugar, de uma situação enquanto eu estava nesse lugar e me lembrava dessa música. Me lembro exatamente de como eu me sentia por estar ali e as coisas que essa música que lembrava produziam em mim. Lembro, ainda, do cheiro do ar, da sensação da roupa no corpo e até do medo estranho que sentia.
Sei que é preciso falar desse medo, porque falar é uma forma de me livrar dele, pelo menos um pouco. Esse medo, que surge de algum lugar, de onde nem sabemos, é o que nos faz voltar e nos faz reféns. Tal é sua força que chegamos a sentir seu cheiro e a vesti-lo como se fosse uma roupa suja e fedida, a qual não conseguimos tirar. É como lembrar de uma música que nos traz lembranças tristes: de um dia, de uma situação, da luz que se apagou no momento errado.
Mas penso no que seria um momento errado e, mais ainda, um momento errado para que a luz se apague. De qualquer modo, sem luz fiquei perdido, no escuro como se minha memória fosse um mundo de mortos e, assim, descubro que as lembranças têm uma espécie de cheiro e de volume e, se quiser, posso tocá-las, mesmo que isso me cause medo, um medo quase vivo que me paralisa e, ao mesmo tempo, me faz querer fugir, fugir gritando. Não, gritar só não basta. É preciso que eu rasgue essas roupas sujas e fedidas e me torne um outro, um outro eu que não é mais eu, que não sabe nada, nem lembra de nada.
E se eu for um outro, não sentirei mais medo e gritar será, na verdade, a minha razão de viver, será o que me motivará a ir mais longe desse lugar em que ouço essa música, que, só agora, percebo parcialmente triste, parcialmente apenas música; pois sou eu quem canta quando ouço essa música: a música passa a ser eu. Ela é tudo o que sou, ela me explica de todas as formas. Ela mostra o meu escuro e, por isso, me sinto nu, sozinho e tolo. Falando sobre tolices parciais e sobre minha roupa suja e fedida enquanto corria, enquanto fugia do que não se pode fugir.
Fugia sim, admito. Não é erro fugir quando se está nu e parcialmente triste. Não é medo verdadeiramente, é apenas escuridão, dor e falta de ternura. Porque, de um modo geral, todo mundo quer ternura, estar envolvido em ternura como num sonho.
Mas, penso que sonhar é lembrar, é lembrar de algo que nem se ousou pensar ou lembrar de algo que nem se lembra de ter pensado, porque pensar é uma forma de morte, e de música. E o sonho é um lugar com cheiro. Se o sonho, no entanto, for terno como uma música, admito que fugir para ele seja menos triste, menos escuro e menos eu. E o medo passa a ser tolo e parcial, e, a música deixa de ser escura, deixa de ser dor e nudez.
No entanto, tudo depende do sonho, da lembrança e do eu envolvido. E principalmente das tolices, porque são delas que aparecem todos os eus: os eus eus e os outros eus. E tudo isso é só um pedaço da coisa toda, é como uma forma imprecisa que só se parece, como se parecer fosse apenas uma forma de buscar semelhanças, nem que sejam imprecisas.
Só que o princípio geral é a necessidade: de um lugar, de luz ou de lembranças. Talvez até de morte, porque a música tem um pouco de morte e tudo se orienta para ela como uma espécie de porto. E, assim, o princípio seria um porto de onde se sai e onde se chega depois de muitos sonhos, já que sonho é música e a música detém todos os direitos sobre todos os lugares, todas as situações e todos os escuros.
E no fim tudo acaba: todas as formas de semelhanças e todos os direitos, porque tenho o direito de estar neste porto, vendo este eu, sentindo estas lembranças e este escuro, querendo apenas saber se há um fim ou se tudo é sonho ou tolice e, penso que o parcial é a única saída aceitável, porque o lugar é a ternura assim como a memória é uma roupa suja e fedida que não é o fim, porque o fim é música!
...come e dorme e ri e xinga e passa mal e morre e Taipei foi destruída e corre em círculos e sofre e trai e chupa cana e eletrifica e sua e destrói sua personalidade e vigia e copia e some na multidão e cai na mesmice e cospe e tatua-se e surge do nada e é incapaz e termina e não atinge o seu ideal e mortifica-se e pára de comer e pára de dormir e volta ao mundo real e chuta o que vê pelo caminho e quer morrer e pega uma faca e pula dentro de uma piscina e sobrevive e vê televisão e desiste e bebe água e bebe cerveja e se joga na frente de um ônibus e o tiram da rua e chuta a porta e xinga e briga e revê a realidade e ri e luta e brinca e faz o que tem que fazer e obtém prazer e não adianta e quer mais e sai às ruas e vê alguém e o mundo é perfeito e tudo é mínimo e tudo é suportável e perde e sofre e quer morrer e quer viver e quer tudo de novo e procura e se vê no espelho e não se identifica e não se reconhece e agora é um outro homem e agora a dor é maior e o mundo agora é pior e a realidade é pior do que se achava e pula de um prédio e desiste e sobrevive e vê uma alternativa e vê que há o que fazer e mesmo assim e mesmo assim e mesmo assim se suicida e se salva e morre e ressuscita e o tempo passa e tudo muda e pensa se é possível continuar a viver e pensa se realmente isso importa e pensa que sim e que não e que talvez e chove...
Sou o monstro,
Não aquele que descende da luz,
Mas o súdito do Sol negro da melancolia*

Ele me atrai e me distrai
Controla a minha razão
E purifica o meu amor

Imerso em sua luz sombria
Busco na música, na noite, no frio
Companhia

A alegria é minha inimiga
A esperança, o meu castigo

Busco a tristeza:
Profunda, eterna e tranquila!
E se vestir-se de ira
Que seja apenas contra mim

Os vultos de meu interesse
Se despedaçam
Se tornam o meu combustível

As dores esculpidas
Se materializam em soturna brandura
Num estágio de contemplação
Muda

É noite!
Eu, aqui!
Na escuridão pensando



O tema "sol negro da melancolia" é inspirado no poema "El Desdichado" de Gerard Nerval.